A rotação dos desastres, em um capitalismo fundado na espoliação permanente e na “irresponsabilidade organizada”, propicia a rotinização de catástrofes sociais e ambientais, produzidas por grandes projetos agrícolas, minerais e de infraestrutura. Pari passu, as responsabilidades são dissipadas enquanto rastros das incorporações econômicas estruturalmente criminosas tornam-se caminhos regulamentares. O desastre socioambiental, produzido pelas Usinas Hidrelétricas Santo Antônio e Jirau (a partir de 2008), no rio Madeira, em Rondônia, pareceu discreto, à sombra do desastre magnificado de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, a partir de 2012.
O novo patamar de perversidade posto pelo crime de Mariana, em 2015, em Minas Gerais, que carregou a bacia do rio Doce inteira, prejudicando centenas de cidades e uma extensa região marítima e litorânea, logo foi pareado pelo desastre tecnológico de Brumadinho (2019), com o sufocamento por lama de tóxica de centenas de pessoas (muitas ainda desaparecidas), do rio Paraopebas (MG), com iminente risco de contaminação de toda a bacia do rio São Francisco. E seguem outros desastres engatilhados na mesma esteira, no mesmo modelo de produção de commodities, em larga escala, a qualquer custo.
A premissa, aqui experimentada, é de que os processos de implementação de infraestrutura de larga escala dependem de cidadelas de poder irrestrito, de “não lugares” políticos em zonas autonomizadas e despidas de qualquer contratualidade social. A fórmula de desastres entronizados – por meio de estudos ambientais precários e agências reguladoras mutiladas – teve, na implementação das UHEs no rio Madeira, sua máxima clarividência.
É preciso que se frise que há um inequívoco endereçamento social das consequências dos desastres. Aqueles que mais interagiam com os ciclos do rio, suas cachoeiras, seus sistemas lacustres e de várzeas, foram ceifados na raiz. Isso aconteceu, justamente porque sua extinção representa a dissipação da soberania social, que é, aliás, o objetivo de fundo de qualquer processo de limpeza social.
Os consórcios responsáveis pelas UHEs Santo Antônio e Jirau impuseram forma e ritmo de implementação, já contando com o abastardamento das instituições de controle e fiscalização. O barateamento do território e da população, na forma de desastres continuados, fazia parte do preço calculado. O desastre, com seus gatilhos de socialização e etnicização dos prejuízos, lastreia o acordo econômico-político, em torno da “província hidrelétrica” no rio Madeira.
Capitais permanecem juntos e serenos, enquanto se mantém a rentabilidade prevista. Há acordo entre os investidores, desde que mantida a possibilidade de contínuas readequações dos aproveitamentos hidrelétricos, sem custos administrativos e riscos financeiros adicionais. Exatamente por isso, as Usinas Hidrelétricas Santo Antônio e Jirau continuam sendo apresentadas como eficientes, inovadoras e limpas, mesmo após a cheia amplificada de 2014. A partir desse fato, deduz-se que a espoliação é simultaneamente cognitiva e material.
Esses indicadores aferidores de “energia limpa” não levam em conta a cessação de ciclos situacionais e culturais de camponeses e extrativistas ribeirinhos. Não consideram, também, a desintegração de milhares famílias e laços de vizinhança. Além disso, não contabilizam as fontes de renda e de convivência suprimidas; nem a “desafetação” de Unidades de Conservação, de repente classificadas como obstáculos, postos no caminho do negócio multiplicador de outros negócios, igualmente depauperantes. Foram ignorados, da mesma forma, os biomas, as florestas, os lagos e demais corpos hídricos da bacia do rio Madeira, onde a vida multiforme antes se repunha e se ritualizava. Tampouco foram levados em conta as cidades e os distritos da região, que foi transformada em zona de extração e de escoamento de energia em grande escala.
A retenção da experiência dessas apropriações devastadoras vêm sendo dificultada por uma política deliberada de blindagem jurídica e técnica erguida e sustentada por um lobby setorial intensivo e por consultorias técnicas, cuja parcialidade está acima de qualquer suspeita. O dimensionamento do passivo socioambiental das usinas hidrelétricas no rio Madeira não pode, por isso, ser apenas quantitativo; não deve se limitar a uma internalização, ex post, das externalidades resultantes dos empreendimentos. O necrológio e o inventário da pilhagem do rio Madeira não deve servir para que sejam internalizados, ex post, custos dissimulados dos empreendimentos, mas para que não se esqueça do que foi arrancado e desfigurado e para asseverar que nada disso tem preço. Não há indenização ou compensação para perdas humanas incomensuráveis.”
O desastre induzido, maquiado como natural, é mais que fonte originária de rentabilidade. É trama para a vigência – nos termos de Foucault de formas expandidas de controle biopolítico sobre os atingidos – em que se anulam os espaços de dissidência e controvérsia sobre os efeitos desastrosos e continuados das grandes hidrelétricas na Amazônia e se assomam dispositivos de segurança e enquadramento dos conflitos socioambientais. Se antes haviam territórios devastados e sob litígio, após a grande cheia de 2014, passam a existir tão somente áreas de risco naturalizadamente.
Ribeirinho, pescador, coletador, agricultor familiar, antes condição potencialmente titular de direitos, decaiu no pós-desastre, para a condição de flagelado, à mercê de políticas emergenciais e assistenciais, quando muito. Foi uma maneira cômoda para os causadores e beneficiados de última instância, de apagar evidências de crimes sociais e ambientais perpetrados. Em ato final, entram em cena a Defesa Civil e a Polícia Ambiental, com suas medidas evacuatórias, aplicadas em nome da segurança das pessoas, ou em nome da proteção de uma paisagem despossuída de pessoas.
A dinâmica destrutivo-criadora do capitalismo no Brasil é intensiva o suficiente para promover silenciamentos territoriais com poder retroativo. Epistemicídios são promovidos para que a marcha forçada, dos grandes grupos econômicos sobre a Amazônia, prossiga sem comoções. Abrem-se temporadas de caça à rentabilidades extraordinárias; abrem-se portos, estações, corridas e corredores para que se prorroguem os efeitos da última crise de sobreacumulação.
A depender dos promotores e legitimadores dessa interminável frente de despossessão, só restará apagamento e amnésia. E não adianta supor compensações do tipo uma devastação ali, uma preservação acolá. Parece não haver chão ou piso para o pior. Esse pior é uma queda livre que leva de roldão todos os limites anteriores de tolerabilidade com injustiças sociais.
A destruição criadora admissível, nesse tempo de catástrofes ambientais, sociais e econômicas – se é o caso de ficar nos marcos dessa gramática finalista – seria a interrupção dessas grandes obras e intervenções não recíprocas com o meio. Seria a reversão dos grandes fluxos de extração de recursos naturais em grande escala, reorientando a dinâmica econômica, em função do uso equilibrado de biomas, solos, rios, vales, em benefício das redes urbano-rurais e dos mercados locais e regionais.
Referência: https://amazoniareal.com.br/desastre-socioambiental-como-negocio-o-caso-das-usinas-hidreleticas-de-santo-antonio-e-jirau/
Comentários